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#rolounarede: depoimento de uma família acolhedora


Luiz e Ana gentilmente compartilharam com a nossa rede este emocionante depoimento sobre a experiência de ser família acolhedora!

Samuel, suas vitórias.

Passava pouco do meio dia quando Samuel chegou à nossa casa. Veio trazido pelos profissionais da assistência social. Depois das apresentações e de poucas instruções sobre o que gostava e do que não gostava, partimos para as assinaturas nos documentos oficiais de guarda provisória.

Pronto, ele agora fazia parte, temporariamente, da nossa família.

Samuel era um garoto de dois anos e cinco meses, metade deles vividos nas ruas com sua “mãe” e o “companheiro” dela, ambos viciados em drogas. Negligenciado e agredido, trazia no corpo, para sempre, cicatrizes que eu não tinha visto nem mesmo em adultos. Na alma, cicatrizes que seriam ainda mais difíceis de serem tratadas. Um olhar distante; um semblante sofrido; um comportamento arredio e por vezes até um pouco agressivo. Conseguia falar poucas palavras – das quais muitas delas eram palavrões – e não conseguia formar uma frase inteira. Mas o que me chamava à atenção e me deixou preocupado era o fato de ele ainda usar fraldas, e de ter como costume revirar o lixo buscando coisas para brincar e comer.

Com toda a certeza o trabalho com Samuel foi um dos nossos maiores desafios. Lembro com muita tristeza ainda, do medo estampado no seu rosto. Eu nunca imaginei que alguém pudesse ter tanto medo, medo da figura masculina adulta, medo que ele não demostrava com minha filha e minha esposa, só por mim pelo meu filho e pelo meu genro, mas especialmente, ele tinha medo de mim.

Na primeira noite em casa, tiramos da sua cama o colchão e o colocamos no piso, perto da nossa cama para que ele se sentisse melhor e para que pudéssemos ficar mais perto dele. Na hora de dormir, aconteceu uma coisa da qual não vou esquecer. Minha esposa levantou-se e foi apagar a luz do banheiro, que tinha ficado acesa. Samuel ficou com medo levantou-se e sinalizou que queria ir atrás dela. Então eu segurei no seu braço e disse a ele:

– Espera Samuel! A tia já vem!

Nessa hora ele começou a chorar e gritar muito, e de medo, chegou a fazer xixi e cocô, nas calças. Foi assustador. Ver tanto medo assim numa criança tão pequena… Eu fiquei muito abalado, imaginando quantas coisas ruins ele deve ter passado, para ter tanto medo do toque, do olhar.

Quando alguém conta uma história dessas, ou parecida com essa, ela já provoca um sentimento estranho que a gente não consegue definir. Mas ali, ao vivo, na minha frente, dentro da minha casa… Eu chorei! Chorei porque ninguém devia passar por isso, ainda mais uma criança. Chorei muito, sentindo uma culpa enorme, pois durante muito tempo, presenciei estas cenas, de abandono, de agressão. Crianças na chuva, no frio, com fome, chorando, mendigando.

E ficava me defendendo com frases feitas, como;

– O problema é das autoridades competentes!

-O problema é da sociedade! Ou então a pior delas;

– Não tenho nada com isso, a culpa não é minha!

Naquele exato momento percebi que a minha indiferença tinha contribuído para aquela situação. Eu poderia ter feito algo sim. Quantos iguais ao Samuel eu já tinha visto, e simplesmente ignorado, transformando-os em seres invisíveis, partes do cenário da cidade.

Chorei sim… Pois a culpa recaía sobre meus ombros.

Demoramos algumas semanas para conquistar sua confiança, alguns dias para nos acostumarmos a acordar a noite com seus gritos, alguns minutos até acalmá-lo depois. Por vezes eu me minha esposa nos abraçávamos e chorando tentávamos confortar e fortalecer um ao outro.

Demorou para começarmos a conquistar com ele pequenas vitórias, a primeira foi o descarte da fralda, devagarinho ele aprendeu a pedir para ir ao banheiro para fazer suas necessidades. Com longas conversas o ensinamos a comer sentado a mesa e a não mais mexer nas lixeiras. Muitas brincadeiras e conversas para deixa-lo tranquilo antes de dormir, e dormir bem, sem gritos ou sustos. E com o passar do tempo, conquistamos sua confiança, o medo no seu rosto começava a dar lugar a um esboço de sorriso e dos seus lábios começavam a sair algumas palavras que depois começaram a formar frases que faziam sentido.

Samuel começava a dividir conosco seus sentimentos, alternando agressividade com carinho. Inicialmente mais agressivo que carinhoso, mas aos poucos ele começou a perceber que nós o amávamos e queríamos que ele nos amasse também.

Durante este tempo um dos desafios foi alcançar as vitórias apesar de tudo que ele passou, sem cair na tentação de fazê-lo esquecer, pois tudo aquilo já foi vivido por ele, fazia parte da sua vida e deveria ser usado por ele como instrumentos para seu crescimento e superação.

Trabalhamos com ele também a questão do medo que ele sentia dos adultos homens. Foi à parte mais difícil do trabalho. Devagarinho tentava conquista-lo conversando muito com ele e mostrando que estava seguro agora e nada de ruim iria lhe acontecer. Foi um trabalho muito lento e intenso. Cada conquista era festejada.

Lembro sempre de como foi maravilhoso, quando,um dia, voltando do trabalho parei ao passar pelo portão de casa e Samuel estava à porta, olhando pra mim, como sempre fazia, eu sorri pra ele e pela primeira vez ele parou na minha frente, me olhou bem no fundo dos olhos, com um sorriso lindo nos lábios e de braços abertos me disse;

Abraço tio!

Naquele momento, eu gelei, larguei tudo que tinha nas mãos, me ajoelhei no chão e abri meus braços. Senti como se o tempo tivesse parado, nada se movia só o Samuel. Ele correu na minha direção e nos abraçamos com força. Assim ficamos por um bom tempo. Nunca conseguirei descrever em palavras o que senti. Foi um momento maravilhoso. Na hora comecei a chorar. Então mais uma surpresa. Ele me deu uns tapinhas nas costas e disse; com doçura na voz…

Não chora tio! Não chora! – naquele momento eu pensei – Quem acolhe quem agora?

Valeu a pena toda a espera, todo esforço e todas as frustrações iniciais. Pois sei que tudo me preparava para este momento maravilhoso. Valeu a pena viver para sentir tudo isso, para estar neste lugar, e fazer parte de tudo isso que estava acontecendo.

Samuel estava mudando, seu semblante, antes triste, demonstrando medo, agora; depois de cinco meses, dava lugar a um sorriso fácil e gestos carinhosos. Seu sono, outrora agitado, agora era tranquilo. Ele passou a nos surpreender com pedidos de abraços e frases como;

Não fica triste tio! Quando nos via com expressões sérias ou preocupadas.

Ou então ele abria os braços e dizia;

Vem cá! Vem cá! E nos abraçava muito forte!

Que sentimento maravilhoso é o amor. Amar alguém que você nem conhecia, até que ele seja contagiado, seja cheio, transborde e transbordando comece a distribuir este amor a todos que o cercam. É uma experiência que vale a pena ser vivida, pois, apesar de breves, os momentos de alegria são muito intensos e nos obrigam a revelar o nosso melhor. Valeu pra mim, valeu pra minha esposa e com certeza… Valeu muito mais para o Samuel. Eu espero sinceramente que mais pessoas possam passar por experiências como esta, possam se emocionar ajudando a mudar a trajetória de vida de alguém, viver esta sensação maravilhosa que é ver a mudança em uma criança… De abandonada para muito amada.

Durante algum tempo Samuel fez parte da nossa vida. Procuramos passar a ele bons exemplos, cuidamos dele, o acolhemos. Ele nos deixou de “cabelo em pé” algumas vezes com suas travessuras, mas tudo típico de menino, saudável, feliz e curioso… Muito curioso!

Mas chega a hora dos preparativos para a partida, visitas de aproximação – pois um casal havia sido escolhido para a adoção – últimas anotações em seu diário de acolhimento. Samuel agora iria fazer parte de uma família, ia “ser” e “fazer” pessoas felizes.

Quanto a nós, hoje choramos, mas a sensação é de dever cumprido. Um dia triste de muita alegria, dois sentimentos distintos dividindo o mesmo momento.

A alegria, por Samuel ter encontrado uma família para com eles continuar sua jornada, e a tristeza por deixar vazios os nossos braços.

Agora esperamos pelo próximo acolhimento, pois somos Tio e Tia provisórios das crianças que aguardam adoção ou retorno a família de origem.

Somos uma “Família Acolhedora”

 

FIM

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